quinta-feira, 31 de maio de 2007

Dicas de maio - Como adicionar um "feed" no orkut

Hoje vou falar sobre "feeds", "feeds" é um recurso onde você pode acessar o conteúdo de um site por fora dele como, por exemplo, ver os posts do Blog Manufatura dentro do Orkut, assim o usuário pode ler os novos posts do blog pelo Orkut. Vou mostrar os passos para tal:

1) Entre no site do orkut e logue com a sua conta Google.
2) Na página inicial do ser perfil tem um item "Editar Feeds" na barra a esquerda, clique nele.
3) Ele já te fornece lista os blogs que você é membro do Blogger para você adicionar automaticamente, a outra forma é entrar com a URL base do "feed" como, nesse exemplo, o do blog Manufatura é: http://manufatura.blogspot.com/feeds/posts/default e clique em "Adicionar".
4) Pronto.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Convidado: Antônio Alves

Da fidelidade

A Larissa Marques

Ao notá-lo inconsciente percebi que era meu inimigo. Este é o momento ideal para alguém tramar algo, de olhos fechados, sobre a cama, de bruços. Retiro o lençol de meu corpo meio zonza, colocando as mãos na cabeça na esperança inútil da dor súbita passar; por um milagre a dor passa e levanto-me sem sobressaltos acendendo o abajur que um outro me dera no Natal em troca dos bons serviços. A luz avermelhada ofusca os olhos como num flash estranho. De imediato a apago na preferência feliz das trevas de minha caverna; acendo novamente e o incômodo vai embora no limiar da noite escura, como num estalo da divina providência. Está lá, de bruços, no ardor de um fingimento, arquitetando meios de me destruir, montando quebra-cabeças, estratagemas sombrios.
Caminho disfarçando-lhe importância, de um lado para o outro, depois até à janela. Admiro a Lua, sempre lá, em órbita. Penso no anti-romantismo de quem veio a esta espelunca e dorme pesado, articulando planos, depois de sugar minha alma em movimentos compassados e torpes; certamente não contemplou uma lua boiando no céu iluminando os corações ternos dos jovens e dos poetas. Na cidade veloz os automóveis flutuam alucinados cheios de motoristas desenluados levando mulheres de minissaia e maquiagem forte para lugares escuros e baldios.
Penso em Carlos, num ímpeto, a fazer versos de rimas previsíveis mas que de certa forma me acariciava o coração, talvez eu quisesse mais que carícias, talvez eu quisesse ser mesmo destruída, trespassada. Às vezes na solidão sinto saudade dele, de sua mão branca e sem pelos a tocar meu rosto como quem nada quer. Eu queria o que Carlos não podia dar. Ainda tenho a caixinha de sonetos guardada a sete chaves e de quando em vez algumas lágrimas caem depois de uma relida enfática. Que destino cruel teve Carlos. Aquele agosto jamais será esquecido.
Parece que o homem deitado quer acabar com a mentira e abrir os olhos de vez. Não, está quieto, ainda de bruços, pálpebras fechadas. Desejaria que ele declamasse algo de Byron, mas o seu braço forte e encardido de operário e falhas em sete dentes eram indícios de sua ignorância para com o lorde. Ah, Byron seria perfeito demais! Seria um Carlos operário, e Carlos era tão-somente Carlos, um funcionário de repartição pública, sem mais. Lembro-me do seu choro quando parti. As cartas com versos apaixonados que recebi depois pareciam mais esfuziantes e os poemas mais organizados, era como se ele tivesse adaptado a felicidade dele à minha distância e isso, de certa forma, não nego, me fazia mal, pois eu era um joguete na sua escrita romântica e ardilosa. Quem sabe eu fosse a musa inatingível. Decidi encontrá-lo, já era tarde. Aparecera morto, com uma bala alojada no crânio. Carlos só me ofertava amor e lua e nada mais.
Teve um dia em que fomos quase felizes, quando saímos correndo pela colina como bobos e deitamos com a face para o céu até o cair da noite, contando as estrelas, sem tocar palavra. E depois até o amanhecer. Abraçamo-nos por um bom tempo, nos beijamos enamorados e nos conhecemos pela primeira e única vez. Carlos sabia escrever o amor, não consumá-lo. E assim ficamos até o dia da escolha.
A noite está vazia, sem estrelas. Da janela do oitavo andar no centro da cidade a vidraça me protege. Deito-me na cama escorando a cabeça no cotovelo direito e deixo deslizar a mão esquerda sobre o corpo do inimigo. Cabelos, dorso, nádegas, panturrilha e pé. Eis uma combinação de luxúria se não fosse minha conduta sacrossanta. Fecho os olhos e penso em Carlos e na sua voz de veludo. Sussurro nos ouvidos do outro “eu te amo, Carlos”. Por sua vez, o homem se revira sobressaltado e me diz nomes feios, impronunciáveis. Toca-me como objeto, traslada meu corpo e me ama a seu modo.
Depois de feito, o homem se veste resmungando alguma coisa vil e bate no meu rosto com pequena força, sorri, deixa um trocado no criado-mudo e sai vencedor da grande guerra, mal sabendo da traição que sofrera, pois Carlos está sempre aqui, dentro de mim, suspirando poesia a cada punhalada do inimigo, possuindo-me verso a verso, rima a rima, numa métrica perfeita, sonetamente.
Um outro entra pela porta e sei que vou amar Carlos mais uma vez.


Antônio Alves é escritor, contista, amante da arte e da loucura. Apreciador da filosofia, em especial a existencialista. Traz seu estilo inconformado e combatente em sua escrita. Faz parte da SPV (Sociedade dos Poetas Vivos de Goianésia), um grupo que tive o prazer de conhecer pessoalmente, tratam da literatura na prática, em debates construtivos e contestadores.
Poderá conhecer mais de Antônio Alves:
http://daliteratura.zip.net/

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Convidada: Lena Casas novas

Gotículas cantam
Tristemente,
Pegadas grudam
No solo,
O calor te ruiu
Gravemente,
Agora,
Tenta alcançar
Teu pólo.
Não há tempo
Para despir,
Varal inundado,
Vestes a cair.
O vento Intrigante,
Tirou
O arco-íris do ar;
Sei...
Estás ferida,
A poluição
Estonteante,
Sepultou
Um pedaço do mar;
Agora,
Tenta perturbar
Tua vida.

Lena Casas Novas

Conheci Lena no Bar do escritor, traz uma poesia cadenciada e bem construída, por vezes parece uma escrita branda, mas não é. Tem força e ideologia nos versos, uma forte representante da poesia feminina. Uma linda descoberta. Encontrará mais do trabalho de Lena no:

domingo, 27 de maio de 2007

Convidado: Marcos Cortês


Foto 3x4

Sorria
Te Amo.

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Foto três por quatro (por extenso)

Foto três por quatro
cinco a seis minutos
Me esqueço no sétimo
enquanto vejo sua cintura
de oitavos.

Eles falam de amor
e eu sinto ideologias.
E dentro do teu fato
eu recito poesias.

Eles falam de amor
eu ignoro abreviações
e pormenores.
Sorria, e te amo.
Te desamo na foto de corpo inteiro.

--


O Planeta Desconhecido (Marcos Cortês)

Marcos é "carioca da clara", vive fora da praia. Preferia os livros, onde encontrava conhecimento sobre tudo, até que descobriu que apesar degrandes, livros não possuem motivos. Então, como que por acaso, caiuno mundo de fantasia, para escapar da fantasia deste mundo. Espera o tempo, investiga o outro, não canta as moças, mas dança com bailarinas. Mas sempre analista. Um analista destrinchador de (falsos) cognatos poéticos. E cético, acima de tudo, cético. Seu blog http://poetaalgum.blogspot.com/.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Convidado: Aluisio Martins

ABRAÇO PERFEITO
Não há rasuras nesse amor tão vívido
Não há fissuras dado que vivo ávido
Quem saberá das idas, dos meios e dos fins?
Lembro do nosso quero bis
Nós vestidos de querubins no bosque das letras
Minhocas enrroscadas nas raizes dos desejos
Sequestrando muito além de carbonos e outros venenos
Dos orvalhos que desciam das tuas palavras noturnas
Verti todos os líquidos
Gota por gota
Minhas lágrimas
Vivo entre espinhos que esgrimam
com a felicidade de existirmos uma vez mais



Aluisio Martins é cronista, ficcionista, poeta, nascido em 1967, em Fortaleza, Ceará, profissional na área de desenvolvimento e gestão de projetos voltados para a cultura e desenvolvimento social e edição de livros.
Sua poesia assim como sua prosa informal, intimista, provocadora e ao mesmo tempo encantadora e sedutora e promovendo uma explosão de temas, cores, sensações, que transita do choro ao riso, do prazer ao ranço, do inferno ao paraíso num só verso. Consegue muitas vezes em apenas um texto despertar amores, ternuras e rancores adormecidos, e nos convida não só a reflexão, mas também à ação.
Aluisio tem um ritmo próprio, é uma metralhadora de metonímias, aliterações, metáforas, alegorias, e consegue instigar nossos sentidos a sensações extremas.
Encontre mais de Aluisio Martins em:
http://fenosefenotipos.zip.net/

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Convidado: Rafael Oliveira


Carros Bonitos
Oh que carros bonitos
Quantos carros bonitos
E nóis andando a pé
Oh que casas gigantes
são maiores do que antes
E nóis pagando aluguel
Oh que mesa tão farta
Mesa grande e farta
E com muitos ricos homens
Oh que vida ingrata
Ao ver pobres na lata de lixo
com fome.



Rafael Oliveira é escritor, de Uberlândia-MG, ou se preferirem, do Triângulo mineiro. Coordena um projeto bem parecido com o "bagaceira", chamado Projeto "3 Poemas", que é uma das ações do movimento literário " Literatura Já", o projeto consiste na distribuição gratuita de livretos contendo 3(três) poemas de autoria do escritor Rafael Oliveira, um texto sobre “Literatura Marginal” e uma breve biografia do autor.
Se quiser saber mais sobre Rafael ou sobre seus projetos, clique:
http://rafaelolliveira.blogspot.com/

quarta-feira, 23 de maio de 2007

CONVITE



Foto: Joana Muge


Deita tua voz em meus ouvidos
ferindo a castidade que me faz dormir tão cedo.
Preciso das pontas dos teus dedos
para que a insônia crave em mim as suas unhas
e eu te guarde, enluarado, entre os meus segredos.

Desenrola teu desejo sobre a minha pele nua
para que a minha boca beba na tua,
esse hálito de flor
e provoque uma súbita troca de posições
onde meus cachos pendam frouxos sobre o teu rubor.

(Para que eu me despeça da maldade
do querer entardecido de ausências,
deita tua fome em nossas pendências.)

E deixa que o dia brote do horizonte
como se fosse do mais íntimo da gente:
adormeceremos ensolarados e castos
como o poente.
*
*
*
Marla de Queiroz

terça-feira, 22 de maio de 2007

A busca pela epidemia

Os heróis, que do passado definiam nossas vidas dizendo quem éramos, foram assassinados e enterrados pela razão. A razão, apaixonada pela crença em seu próprio poder, projetou no futuro científico o sonho de um mundo de progresso e desenvolvimento; jogamos a mitologia para o lado e miramos, com nossos olhares positivistas e admirados, o porvir utópico.

O tempo, como era de se esperar, passou e trouxe a decepção. Decepção de vermos que nossa política não acompanhava nossa ciência, que nosso egoísmo continuava tão brutal como nos tempos obscuros. A tecnologia não trouxe menos carga de trabalho, mas sim desemprego. A otimização dos meios de produção não acabou com a desigualdade, mas criou novos faraós. Nasceram impérios com base no suor e na fome da mão-de-obra vinda do campo e recém-transformada em massa. Massa esta, que um dia foi vista como germe de uma possível revolução. Revolução abortada por seus líderes que (como hoje parece ser óbvio que aconteceria, mas que na época foi triste e brutal traição) se enamoraram pelo poder, tornando-o totalitário e terrível. Outra dificuldade para a sonhada revolução foi a impossibilidade de transformar massa em conjunto de indivíduos, em força intelectual e física contra um império que se fez gostar disfarçando-se de democracia.

O sistema enfraqueceu a possibilidade de revolta, não com a mão pesada da ditadura, mas com a sedução do consumo. O ter, muito facilmente, substituiu o ser. O parecer se apropriou do todo; da morte da alma brotou o simulacro.

Hoje, sem mitos do passado ou utopias do futuro, o homem já nasce cínico. Afunda (pensando flutuar) no vácuo que se tornou essa existência sem fundamento e sem projeção. Vida, dita pós-moderna, sem história (que lhe dê bases de sustentação) e sem esperança (que gere força e possibilidade de ação). Neste limbo, nos conformamos em sobreviver e desistimos de lutar por não sabermos como.

Mas quem sabe, exista esperança. Talvez ainda sem forma definida, mas adivinhada ou imaginada porque sentida ou, ao menos, sonhada (e para nós que até o parágrafo anterior tínhamos o nada, isso já é força!). A esperança é que alguns ainda insistam em pensar. Alguns teimosos se recusam a abrir mão do direito que elaborar novas questões ou de dar voz a antigas. Enquanto houver sussurros e/ou gritos dissonantes, há possibilidade de algo que não sabemos o que é, mas que só por não ser senso-comum talvez já valha a pena. Por isso, não subestimemos o poder de uma conversa entre amigos inconformados, mesmo que a principio ela pareça (ou mesmo seja) somente catarse. Nem ignoremos as poesias, os romances, os contos ou mesmo os panfletos que nos despertem a ira e a vida. Temos que acreditar na possibilidade de contágio. Afinal, não seria assim tão surpreendente se as vozes dos inconformados um dia se multiplicassem. Outras epidemias e pandemias já existiram, e não foram pequenos os estragos que elas fizeram, por mais forte que os sistemas imunológicos dos organismos atingidos fossem considerados até então.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

The Postmodern Condition

Gosto de observar e ouvir a água caindo no chão seco seja esse, apenas terra fofa, chão batido, concreto ou asfalto. É mágico fixar o olhar nas células sendo sugadas pela terra e algumas gotículas invisíveis a olho nu se evaporando.
Talvez esteja ai a simbiose do existir em contrapartida com o inexistente, porém, nesse caso a água existe, então depois de ser sugada ao menos aquele líquido específico – isso porque estamos tratando do meu copo -, deixou de existir, ou evaporou-se? Podemos fracionar tudo em regras cuja solução seja a coerência do óbvio, para não usar termo pejorativo.
Para tudo temos frases que nos traz essa concepção fechada - Bom, nunca me canso de repetir a frase ‘a morte faz parte da vida’, porém mesmo ora tendo consciência disso os fatos nos pegam de surpresa e não encontramos saída para aquilo que parecia, podia e, possa ser tão óbvio, tão objetivo.
Mas penso que as coisas são assim propositalmente. Pois acredito que é preciso que estejamos presos para não sairmos no momento em que não podemos sair – um canal hídrico? Infância? Relacionamento? Leis? -, sei lá se isso se trata de destino. Hoje desacredito e acredito em tudo, até em mim mesmo.
Imaginemos a contenção numa escala perpendicular, ou seja, uma realidade que num determinado momento será surreal, senão, impalpável, mas que logo se encontrará para o tocante ao fato de existir, ou seja, formar uma realidade coesa.
Posso simplificar a vida do Pedro e da Carola, o Pedro gosta da Carola, mas ele vive em Guarulhos, trabalha em uma adega como recepcionista, é poliglota – estamos falando de francês, espanhol, italiano e inglês -, está cursando engenharia química em uma universidade federal e ainda não tem dinheiro para aquisição de seu carro próprio, apesar dos seus sete anos dedicados a carreira profissional, três a universidade, o que subtrairíamos nove anos dos seus 28 completos no dia 28 de janeiro deste ano.
Já a Carola tem 26, fala inglês e está cursando espanhol, com muita dificuldade, não porque ela não tenha condições para pagar o curso, mas é que não consegue habituar-se com a pronúncia verbal da América Latina. Ela está terminando o curso de assistência social e pretende cursar relações públicas, por isso dedica mais de 1/3 do seu salário de recepcionista de call center à cursos de línguas. Tem cabelos negros, lisos sob altura do ombro, pele clara e olhos castanhos. Aprendeu a bordar aos sete anos, apenas observando sua mãe bordando no sofá. Numa determinada época colocou na cabeça que queria se casar, e que isso aconteceria logo, tratou de organizar e bordar o enxoval aos 15 anos de idade com a ajuda das tias Helena e Erondina, senhouras rondonienses típicas da região rural.
Carola nunca saiu do seu Estado, conheceu Pedro na Internet, através de uma sala de bate-papo no portal da UOL, se identificaram pelos nicks, ela adorava Kid Abelha – isso há seis anos -, e ele de comida doce, seus respectivos nomes eram: Mel e Pintura Íntima. O assunto rendeu: aparências, sexo, drogas, sexo, idade, sexo outra vez, sexo, sexo, sexo, métodos contraceptivos, sexo, desejos, dinheiro, mentiras na Internet, música, rock, Kid Abelha, flan de chocolate, sexo, mel com aveia, sexo, mel sobre o corpo e sexo. Depois decidiram falar sobre o futuro, e já se imaginaram casados, mas ele precisava vê-la, ao menos em foto mesmo sem o rosto. As pernas e bumbum eram contemplativos. Ela não precisava disso, o discurso dele fez com que ela idealizasse a vida e a morte em menos de vinte minutos.
“Eu estou aqui há quilômetros de você, e se não fosse um desses fatos inusitados não estaríamos tão saudosos um pelo outro, certo?” Errado! O Adalberto tem a melhor das intenções e está a oito metros da casa dela.
“Te desejo tudo de bom, ótima percepção do mundo, coerência, amabilidade, emoções a flor da pele e muita atitude, contradições, paradoxos, e comedimento, porque de certa forma isso pode não ser a vida, no entanto, é o que nos faz senti-la”. Por que as mulheres têm que ser tão densas, se o que é bom de viver é curtir as coisas sem contextualização? (...) Alguns passam por muito em curto tempo, outros levam anos para viver um único fato. A liberdade, por exemplo, vive correndo atrás de mim, e eu vivo correndo contra ela por estar preso em conceitos pragmáticos e dualistas talvez, não tenho respostas.

domingo, 20 de maio de 2007

Coexistência




Todo mundo invejava o casamento de Adriano e Júlia. Ah, mas que fique bem claro: uma inveja saudável – se é que isso existe. Os dois viviam sempre juntinhos, trocando juras de amor e sorrisos cúmplices.
Enquanto isso, nos bastidores da relação...
- Há algum problema? Há algo de errado nesse texto? Por que você insiste em me boicotar? Não consigo entender as suas recusas...
- Eu te entendo, dizia Júlia.
- Pára de lixar essas unhas e olha para mim. Fala comigo, Júlia.
Júlia franziu a testa, passou a lixa no canto da unha do dedo indicador pela última vez, pegou um chumaço de algodão cuidadosamente, com as pontas dos dedos. Na outra mão pegou um frasco de acetona, molhou o algodão, e, enquanto fazia um bico com os lábios, como se fosse beijar alguém, esfregava o algodão nas unhas, assoprou-as ainda úmidas e olhou para todos os dedos das mãos, como se estivesse dizendo a si mesma, “é linda a minha mão”. Levantou-se, colocou o frasco de acetona em cima da escrivaninha, e saiu. Estava de roupão, gostava de andar de roupão pela casa, pés no chão, e um cheiro de quem acabou de sair do banho. Um perfume suave que aliado aos seus movimentos vagarosos e despreocupados pareciam agredir o ambiente hostil.
Adriano amava o que escrevia. Adriano pensava mais do que escrevia. Adriano teorizava o que escrevia. Adriano odiava se não lessem o que ele escrevia. Adriano queria absorver Júlia. Adriano queria que ambos fossem um, não aquele um metafórico que simboliza união. Ele queria domínio. Adriano não queria ser ela, mas queria que ela o compreendesse em todas as ocasiões. Com o passar do tempo Julia descobriu que a resposta mais apropriada para as indagações de Adriano era, “eu te entendo”.
- Sabe, andei pensando em nós dois. Nos últimos tempos tenho estado muito preocupado com o próximo livro. Precisa compreender que depois daquela resenha, na Folha, sobre o meu último livro, tenho a minha grande chance. Preciso me superar no novo livro. Pela primeira vez um crítico literário conseguiu vislumbrar a magnitude dos meus escritos. Mas, para que eu possa ter sucesso nesse trabalho, você precisa colaborar, somos um. Você é minha inspiração.
Essas palavras foram proferidas no banheiro, Júlia tomava banho enquanto Adriano, sentado na tampa do vaso sanitário, proferia seu discurso. Há muito tempo Júlia aprendera viver em silêncio. A cantar em silêncio, a pensar em silêncio. E, silenciosamente, cantava uma música. Adriano proferindo seu discurso e Júlia imaginando notas musicais, violinos, um coral de vozes... O banho estava prazeroso, a água quente, as suas idéias distante da frieza que habitava o lado de fora do box. Adriano desistiu de falar. A última palavra que Júlia ouviu foi, “dormir”. Sentiu-se aliviada ao ouvir aquilo. Saiu do banho, passou creme por todo o corpo, fitava o seu corpo no espelho quando percebeu a banheira refletida logo atrás de si, deu um sorriso ao lembrar que foram poucas às vezes que usaram aquela banheira.
Chegou no quarto, Adriano escrevia obstinado. Agora, ela já percebia uma alegria no seu olhar, percebia que ele tinha encontrado o ponto certo de sua narrativa. E quando ele se percebeu sendo admirado, ficou sem jeito.
- Júlia, agora vai! Já tenho tudo o que preciso aqui.
Júlia se recostou no sofá-cama do quarto, ali mesmo perto da escrivaninha, cantarolou uma música em silêncio para não atrapalhar o marido, e adormeceu. Não era submissa, tampouco era feminista, não era infeliz por viver em silêncio. Ela também xingava em silêncio, brigava em silêncio...
Júlia era toda nulidade, negação de si, pura abnegação, só nunca concordou em ler os textos de Adriano, não gostava de literatura. Nunca discriminou o marido por ser escritor, nunca fez nenhuma cobrança, sempre o apoiou e, de certa forma, se sentia orgulhosa com o sucesso do marido. Mas, Adriano queria ouvir críticas, opiniões, sugestões... E Júlia oferecia silêncio.
Um dia Júlia foi embora em silêncio. Não deixou carta, não deixou telefone e endereço. Adriano está escrevendo um romance, iniciou o segundo capítulo, mas busca inspiração para prosseguir escrevendo depois da frase “eu te entendo”.

sábado, 19 de maio de 2007

O submundo

Vivo no submundo
Dentro de um mundo
Que não me entende
Sinto a minha hipocrisia
No seu mundo
E dos percalços surgidos no meu submundo
Vivo no meu mundo
Na busca da minha sobrevivência
No encontro da minha identidade
Perdida entre os mundos
Que não me entendem
Vivo no mundo
Escondido entre as máscaras
Em um submundo
Que só ele me entende

sexta-feira, 18 de maio de 2007

O Amor e a Ética

Dar aulas na faculdade nunca fora o intento do Prof. Arnaldo Biroswki. Vivia bem com os livros sobre literatura, os quais rendiam uma receita que dava para viver bem e para “matar o tempo”, lecionava em dois colégios de um amigo. Segundo grau, coisas simples, alguns comentários sobre os livros que cairiam no vestibular eram o bastante. Aceitou a cátedra mais por vaidade que necessidade, tal foi a deferência do reitor ao convidá-lo. Isso mexeu com seus brios profissionais, sim senhor.
O ambiente universitário era diferente daquele ao qual se acostumara. Desde que enviuvara, era um homem bem diferente. Com poucos amigos, nenhum vício, o excêntrico horário de se recolher, impreterivelmente às oito e meia da noite, fizera dele um recluso, uma espécie de asceta literário que preenchia seu tempo entre livros e aulas. Não que fosse um tipo ancião, pragmático. Beirava aos cinqüenta, mas ainda era bem apessoado e demonstrava no máximo uns trinta e oito. Seu modo de vida inspirava diferentes reações, que iam da admiração ao escárnio.
Mas as últimas semanas estavam tornando o campus pequeno para ele. Como professor de segundo grau, sempre soubera tratar com as platônicas paixões devotadas a ele pelas alunas, todas adolescentes, que embora no geral fossem na sua maioria belas, ainda não haviam deixado de lado alguns traços característicos da infância. Conversava pausadamente, explicando que era velho demais, que ainda encontrariam um jovem de bom coração que lhe devotaria o mesmo apreço e por aí ia. Isso bastou em noventa e nove por cento dos casos. O que ele não contava, era encontrar o número que faltava para fechar a porcentagem na faculdade.
Amanda era uma morena trigueira, de belos olhos e de um corpo digno de um desenho de Rembrandt. Logo na aula inaugural, ele sentiu-se novamente fuzilado por aquele olhar castanho, profundo e inquietante: agora ela não tinha mais aquele ar de menina-moça, havia se tornado uma mulher extremamente atraente e sensual. E o pior, é que ela sabia muito bem disso e tirava partido da situação. Não foi difícil reconhecer a caligrafia do cêdêefe da sala no primeiro trabalho dela. Sabia muito bem como convencer um homem. As perguntas que ela lhe lançava durante as explicações, os questionamentos no final das aulas, em um tremendo esforço para ficar a sós com ele, o retrucar lânguido do aperto de mão, tudo aquilo tinha o seu quinhão de tentação.
Ele se apoiava na ética própria de nunca se envolver com alunas. Muito embora não tivesse um relacionamento sério desde a morte da esposa. Casou-se com a primeira namorada, quatro anos de vida a dois, muitas recordações, nenhum filho, uma morte trágica: o amor nunca fora realmente um terreno fértil para Arnaldo. Já era agradecido pelo que havia vivido, mexer novamente nas placas que soldavam seu coração não teria sentido, podia abrir alguma ferida antiga. Vivia quase só e isso lhe bastava. O quase era personificado na figura de Antenora, misto de empregada e conselheira, que há quinze anos era quem cuidava de sua residência.
E era justamente por todo este conhecimento da sua governanta, é que o Prof. Biroswki não acreditou quando ela disse que alguém o esperava no salão. Ele estava como sempre, na imensa biblioteca herdada dos seus ancestrais, lendo ou relendo algum volume de certo interesse e ouvindo Caruso, no caso Ridi Pagliaci. Ficou um tempo absorto, pensando no inesperado da visita, mas como o recado teve como ênfase a palavra urgente, mandou que trouxesse quem o esperava.
Era Amanda, como ele imaginava. Chegou a admirar a audácia dela. Ao serem deixados a sós, a moça não perdeu tempo em dizer seu intento. Nem precisava.
Atravessou a espaçosa sala, dirigindo-se entre a mobília ricamente trabalhada, ornada com peças de alto valor histórico e venal, detendo-se diante dele.
Usava uma espécie de capa de couro, do tipo que se usa em dia de chuva, mesmo estando em pleno verão. Estacou a centímetros do rosto dele, puxou levemente a cinta que cingia sua vestimenta, abrindo-a por inteiro. Não usava nada por baixo e exibiu todo esplendor daquele corpo macio que convidava ao pecado. Com um movimento rápido, jogou a capa ao chão.
- Dá-me um bom motivo para não tomar tudo isto só para você.
A voz dela era imperiosa, o olhar faiscava vontades e demonstrava toda a determinação de uma mulher em querer algo, ou alguém. Arnaldo olhava estático, desta vez fora pego de surpresa e que surpresa. Suas conhecidas e elogiadas capacidades intelectuais nada poderiam fazer para ajudá-lo no momento, não sabia que decisão tomar por instantes. Atingido como que por um raio, dirigiu-se para a larga porta. Abriu uma das partes e gritou pela governanta. Agora era Amanda quem não sabia o que fazer: a chegada da empregada, que vinha se desculpando com o patrão foi recebida com um potente e demorado beijo de língua, daqueles que se vê no cinema, mas com uma força maior. Parecia um beijo que demorara muito para acontecer.
Sentindo-se novamente a garota do ginásio que fora preterida pelo mesmo professor, Amanda abaixou-se, pegou suas roupas e saiu cabisbaixa. O beijo ainda continuava. Não precisava de outra explicação.
O sair da visitante, bastou para acabar com a magia do ósculo. Antenora estava vermelha como um pimentão e olhava atônita para o professor. Este, tremendamente perturbado, girou nos calcanhares e foi para o nunca freqüentado barzinho que inutilmente preenchia um dos cantos da ante-sala. Serviu-se de uma dose avantajada de whisky e bebeu de um só gole, como um inveterado bebedor. Suas idéias estavam muito mais que confusas. Começou a se lembrar da fisionomia da garota em todas as aulas, o olhar apaixonado, a decisão quase suicida de encontrá-lo ali, com a paixão aflorando por todos os poros. Sentiu-se um canalha por não haver ao menos conversado com ela, tentar explicar algo que ele agora sabia que não era verdade. Ela mexia com ele, que, por conta de sua ética arcaica, não se arriscara a aventurar-se. Voltou à biblioteca, para se desculpar com sua funcionária.
Ao adentrar o vasto salão, deparou-se com Antenora nua em pêlo, parada com os braços abertos em convite. Olhou a diferença daquele corpo com mais anos que ele próprio, os seios arfando, o sorriso banguela, pois a dentadura fora arrancada pela força do beijo:
- Ah, meu amor, há treze anos espero este momento!
Disparou porta afora, pegando o celular jogado na mesa.
- Alô, aqui quem fala é o Professor Biroswki, preciso imediatamente do telefone de uma aluna. O nome? Amanda. Amanda Gouveia...

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Farfalla - Parte Final.

Um campo aberto, com nuvens lembrando bolas de algodão (aquelas da infância)... Um gramado sem fim, daqueles que se findam no horizonte, onde meus olhos chegam, mas nunca minhas mãos...

Com água correndo por entre pedras... Algumas flores colorindo a paisagem (brincando de florescer) e muitas árvores de caules largos, os quais meus braços (sozinhos) não conseguem abraçar.

No topo de uma montanha, da altura do meu sonho, um solitário chalé com varanda e um olhar enigmático que percorre a extensão da paisagem que alterna sol e chuva, numa composição tão lenta que a alma parece sair de um sopro da palma das mãos de um fio condutor...


“Então, surge um pensamento: Um dia... Lá será um lugar para se chamar de lar!”


E num aceno silencioso de pequenos dedos ligeiros, lanço o sorriso menina ao ar e me apresso em passos rápidos e faceiros... Rumo a paisagem... Rumo ao horizonte que sempre foge porque nunca sou rápida o bastante...

E roda a ciranda da vida... As flores murcham em seus galhos e as folhas se desprendem... Parecem que ganham asas, mas não, o vento as socorre e sepulta uma a uma no mesmo chão que agarra meus pés para que eu não encontre o azul dos olhos meus...

Aos poucos, meus passos abraçam uma lentidão... Se demoram e o meu sorriso? Foge para os bicos dos muitos pássaros que colorem os ares com suas penas coloridas... (às vezes, fazem lembrar um arco-íris). Eles são meninos arteiros... Passam em vôos rasantes pela relva... Brincam na areia, como se água fosse... Disputam o azul dos olhos meus e trazem a pele uma saudade gostosa, daquelas que abraçam com calma e a gente suspira profunda e intensamente percorrendo vilas de nossas lembranças...

E os pássaros insistem no vôo e eu apenas aprecio com meus pés ainda pregados ao chão e tudo que resta é um sonho, que já não me acompanha, prefere a sombra de uma árvore qualquer, perdida entre a eternidade e seu fim derradeiro...

Então meus pés tentam rodopiar como antes, até faltar o fôlego – já não conseguem mais... Se atrapalham entre uma marcha e outra. Parece até que a chuva que cai, acha graça... Enquanto goteja pela paisagem, uma melodia percorre meus lábios e a voz pouca, já cansada ensaia um antigo refrão... Uma cantiga. Ah! Sinfonia... Adágio!!! E toda a paisagem segue no compasso lírico de uma marcha silenciosa por entre folhas e vôos e eu apresso meu passo numa dança de movimentos que se repetem... Agora com mais calma. Já não corro mais pela relva como antes e o horizonte está lá... Cada vez mais distante!

E no chalé, um sorriso antigo se reinventando de quem aprecia a tudo e parece se divertir com isso... O tempo passa para todos, para a chuva, para o sol, até mesmo para os vôos dos muitos pássaros que não se repetem, embora na distração do meu olhar (já não mais tão atento) eu acredite que eles ainda sejam os mesmos...

Ah! E quando passa pela varanda um vento mais forte, trazendo consigo o cheiro adocicado da chuva, o qual já não sei mais se é ilusão ou verdade... Encontro aquela mão pequenina de dedos ligeiros acenando ao vento para mim... Engraçado como se parece com alguém... Ah! A memória já não acusa a lembrança e eu tento retribuir o aceno e o sorriso familiar... Mas o cansaço me vence...

De repente, os passos da pequena admiradora ganham “asas” e correm ligeiro pela paisagem... Lá vai ela... Munida de uma ingenuidade singular ao percorrer o horizonte... Lá distante, acreditando que se for mais rápida, ele irá ser alcançado!

Estranha sensação que percorre a alma e faz parecer que o chão já não me prende mais... A imagem distante, daquele velho horizonte parece se aproximar cada vez mais dos olhos e a alma... Agora, quem está mesmo distante é a pequenina de dedos ligeiros que parou de correr e voltou a acenar!

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Maria Baderna

Como bom atleta de final de semana, encontrava-me em minha corrida vespertina, realizada somente aos sábados (isso em caso de tempo bom). Para variar o caminho, saí de casa e não fui em direção ao parque. Meu destino naquele dia foi o campus da universidade. Desacostumado com o esforço físico e castigado mais ainda pelo vigoroso Sol daquela tarde, já punha a língua de fora após 2 quilômetros de percurso que me pareceram meia maratona. Meu fôlego aumentou um pouco após a inesperada garoa que começou a cair. Contudo, a simpática chuvinha transformou-se em pouco tempo numa ameaçadora tempestade (efeitos do el niño...). Parei de correr e voltei-me num círculo a procura de um abrigo. A algumas dezenas de metros reconheci o imponente prédio da biblioteca universitária. Dirigi-me para lá correndo, gastando as últimas energias que possuía. Cheguei à entrada do prédio arfando como uma pessoa afogada, mas procurei disfarçar haja vista a presença de simpáticas alunas no local. Fiquei na companhia delas que, como eu, esperavam a chuva diminuir um pouco para saírem do lugar. Meus planos vieram por água abaixo (literalmente) quando uma rajada de vento praticamente me expulsou para dentro da biblioteca. Cheguei a óbvia conclusão de que, de bermuda e camiseta, debaixo daquela chuva e açoitado pelo vento, o máximo que conseguiria, se ficasse ali exposto, seria uma pneumonia. Entrei no prédio e fiquei andando durante algum tempo pelos seus corredores, a fim de secar-me mais rápido. Entrei numa lanchonete e pedi um café. Pouco depois, já seco e aquecido, resolvi passear um pouco por entre os livros; sempre gostei de ler e queria descobrir as novidades. Passeando por entre as estantes, deparei-me com um antigo livro de biografias, mas com uma particularidade: apenas mulheres estavam ali relacionadas, e todas tinham vivido no Brasil. Tirei-o da estante e me sentei em uma daquelas cabines que os universitários usam para o estudo. Percorrendo o índice, encontrei as mais famosas personalidades brasileiras do sexo feminino: princesa Isabel, Bárbara Heliodora, Cecília Meireles e Maria Bonita, dentre tantas outras. E naquela extensa lista, reparei também em um nome que nunca ouvira falar: Maria Baderna. Interessei-me de imediato por aquela história, afinal, já conhecia um pouco da biografia das outras mulheres. “Com um nome desse, devia ser um poço de confusão, ou mesmo uma criminosa”, pensei. Abri o livro na página indicada e, ao contrário das outras personalidades, não havia uma foto ou mesmo desenho para ilustrar a biografia. Era, pelo visto, uma mulher do povo. Uma pena, pois queria ver o rosto daquela “baderneira” que merecera até mesmo um verbete de dicionário. Pois bem, inicialmente descobri que Maria nascera na Europa em 1825, provavelmente na França. Envolveu-se em movimentos políticos na juventude e, em 1850, resolveu mudar-se para o Brasil. Após passar alguns meses em um navio, aportou no Rio de Janeiro, onde fixou residência. “Até aqui, nada demais”, estranhei na hora. E continuei: Maria se tornou dançarina, e deve ter alcançado algum destaque, pois segundo alguns, provocava desavenças e brigas entre os homens. Daí ter recebido o apelido de Maria Baderna. Outros pesquisadores, no entanto, garantem que o apelido veio de outra forma: Maria também era abolicionista, e chegou a organizar quilombos no interior da província; ela participava dos movimentos sociais e encontros populares, que evidentemente reuniam uma multidão de pessoas ansiosas por reformas sociais e a própria liberdade. Com os nervos “à flor da pele”, era natural que eventualmente alguns desses eventos terminasse de forma mais agitada. As velhas raposas não perderam tempo em batizar a dançarina com esse apelido, numa clara maneira de tentar depreciá-la. Interrompi a leitura e passei a refletir. Sem dúvida, a segunda versão me parecia mais convincente, afinal, a injúria é uma das formas mais eficientes para tentar anular a influência de uma pessoa que vai contra a ordem estabelecida e os interesses alheios. Para a chamada elite, pessoas com consciência política e baderneiros são simplesmente sinônimos. Por fim, descobri que Maria morreu ainda jovem, em 1870. Tinha 45 anos e estava no interior da província, talvez em um dos quilombos que ajudara a criar. Fiquei alguns instantes imerso naquela pequena história, que mal ocupava uma página do livro e contrastava diretamente com a extensa biografia das princesas, nobres e grandes artistas ali descritas. Aquela simples página no meio de tantas para mim representava muito bem o que o povo significa na vida da nação como um todo: um pequeno papel que muitas vezes passa despercebido. Olhei em volta e percebi uma jovem negra que procurava algum livro na estante; mais ao canto da sala, um senhor também negro catalogava revistas para a seção de periódicos. Imaginei como Maria Baderna ficaria feliz ao perceber que, embora os negros (e outras minorias) ainda sofressem com o preconceito, eles já estavam livres, ao menos, dos grilhões de ferro, físicos e palpáveis. Restava agora lhes libertar dos grilhões subjetivos, dos preconceitos e das condições menos favoráveis de vida. Mas isso, já era tarefa nossa. Levantei-me após algum tempo e deixei a obra fechada sobre a mesa. Quando já estava saindo do recinto, retornei repentinamente, voltei a abrir o livro naquela biografia, e o deixei aberto sobre uma mesa central: queria que outra pessoa descobrisse a história daquela interessante e injustiçada mulher. E ao sair da biblioteca (a chuva já cessara), caminhando pelo campus em direção a minha casa, perguntei para mim mesmo qual seria o apelido mais adequado para aquela dançarina européia que, na casa dos 20 anos, se viu em um país tropical lutando pelo fim da escravidão:
Maria: Baderna ou VISIONÁRIA?

terça-feira, 15 de maio de 2007

Arranhão

Acolher pragas
Semear o tétano da alma
Como se fossem as flores do campo
(enforcadas em maio)

Cuspir no amado prato
Recolher o humilhado rabo
Dentre as trêmulas pernas
Para não perder o ritmo
do rebolado

Falsificar o documento da existência
Clonar o poço da urgência
Manter-se em pé na corda bamba
feita de nervos e algodão
dizer sempre não
Quando o sim anseia um sibilo cristalino
e a alma um arranhado pequenino

Sonata enluarada...
somente parte de uma canção mais depravada

(nada que eu possa fazer pela poesia!)

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Carência de mãe

Eu estava em uma roda de amigos quando o tema da comida dos naturalistas e vegetarianos surgiu. Houve um ataque violento desferido contra as carnes vermelhas. Elevam a pressão arterial, aumentam a taxa de ácido úrico e engrandecem a taxa de colesterol, além de representar o sacrifício de milhares de animais indefesos. A defesa foi imediata e tão veemente quanto: as milhares de plantinhas indefesas também não escapam do sacrifício. Sem a carne não estaríamos reunidos aqui em torno da churrasqueira e não estaríamos discutindo o futuro da humanidade.
No começo da noite cheguei em casa, solitário, e ainda com aquela conversa da comida saudável martelando na cabeça.
Vinho é bom para o coração. Chá de boldo e de carqueja aliviam os trabalhos do fígado. Chá de erva-doce é digestivo e evita gases. Berinjela combate o colesterol. Amendoim com casca é afrodisíaco. Alho afasta a gripe e vampiros. Chá de folha de nabo é indicado para aliviar as hemorróidas enquanto o nabo inteiro as prejudica. Acredito que a aguardente é fantástica para arrumar emprego. É muito comum o alcoólatra chegar em casa dizendo que estava procurando emprego. A lista é enorme. Não estou pensando em nada que resolva problemas como espinhela caída ou unha encravada. Meu problema é carência.
Não é o que você está pensando! Tenho namorada e namoramos ontem à noite depois do cinema. Refiro-me à carência de mãe. Do afeto maternal. Aquela coisa de colo, de cafuné na cabeça e palavras ditas bem baixinho.
Qual será a comida que combate ausência de mãe? Minha mãe está muito distante, um telefonema é muito pouco. E não enche barriga nem coração.
Pizza, miojo e lasanha resolvem problemas imediatos de falta de cozinheira. Nossa Senhora dos Solitários Abandonados, além de não ser erva medicinal, não tem o calor da nossa mãe.
Preciso urgente descobrir qual é a comida terapêutica para carência maternal. Não é só menino que sente falta do aconchego da mãe.
Na cozinha, abro armários e potes. Olho caixas e pacotes. Procuro aqui. Procuro acolá.
Açúcar? Humm. Isso lembra infância. Doces da mamãe, geléias e bolos.
Na geladeira vejo alface e lembro dela dizer que “tem de comer, é bom para os intestinos”.
A respeito do café, minha mãe sempre dizia que eu não deveria tomar à noite, senão eu não dormiria.
Volto para o armário e continuo procurando. Chocolate em pó, salsichas, sardinhas, sabão em pó, aspargos.
Sabão em pó? O que esta caixa está fazendo aqui?
Sopa de ervilhas, macarrão, goiabada, pipoca de microondas, arroz, maisena, outro pacote de macarrão, batata palha, leite condensado, creme de leite.
Volta lá! Achei! É isso, maisena. Mingau de maisena!
Mingau de maisena é mãe servida em prato de sopa!

※ ※ ※ ※ ※
Esta é minha homenagem às mães, cujo dia foi comemorado ontem, e está no livro (não publicado) Aventuras Culinárias.

domingo, 13 de maio de 2007

Minha Doce Vampira


Teu gosto está impregnado em minha pele,

Gosto de sangue de dia seguinte,

Coagulado, seco e ruim,

Mas continua em mim.



Pois ontem perdeste-te,

Entregaste tua alma aos meus loucos desejos,

Por que na entrega são criaturas que vejo,

A me possuir, zombar de mim,

Sodomizar.



E desse modo grotesco, assim,

Me teve, fui tua, cravei em tua pele

Meus dentes, minha unha,corrosiva febre,

Das paixões lascivas que tanto procuro

E que a noite sempre me concebe.



Te tive e fomos coladas, uma só carne,

De criador virei criatura,

De gato, fui lebre

E num êxtase de meu macabro delírio,

Te fiz vampira e hoje é a mim que bebe,



Farta-te,

Deve...



www.memorteme.blogspot.com

sábado, 12 de maio de 2007

Na fábrica

Fez-se uma fila que se estendia de um lado a outro do corredor que dava acesso à sala do diretor da fábrica, Sr. Hernandes. Vinte e dois funcionários esperavam ansiosos alguma informação sobre o motivo dessa convocação inesperada. Dentro da diretoria estava Luciano, supervisor-geral; Valesca, funcionária da fábrica; José, o faxineiro e o próprio diretor.

A reunião já durava trinta minutos. Por todo o corredor os boatos eram unânimes: finalmente descobriram o romance entre Valesca e Luciano. Teriam encontrado os dois no galpão de limpeza, ou aos beijos em um dos elevadores. O amor proibido era talvez a base do relacionamento. Ele era um homem sério, de poucas palavras, tinha esposa e dois filhos. Ela morava sozinha, não o amava, era inteligente o suficiente para não o amar, queria deixar de ser uma simples empregada que tinge os tecidos fabricados para ser uma secretária, usar terninho e salto alto. Porém o romance crescia. Pouco a pouco estavam mais próximos, entregando-se mais, como conseqüência, estavam menos cuidadosos em esconder o affair.

Ouvia-se o choro da moça dentro da diretoria, ela parecia desesperada. O supervisor saiu da sala juntamente com José. Os dois tinham o semblante fechado, preocupado. Luciano se dirigiu aos empregados e comunicou o falecimento do vice-diretor, Adalberto. A inquietação de todos fez o diretor aparecer trazendo Valesca que ainda tinha os olhos inchados e soluçava muito. Hernandes explicou aos funcionários que o vice-diretor fora assassinado essa tarde. A decepção no rosto dos funcionários era visível. Os comentários sobre o relacionamento de Valesca e Luciano abafaram a morte de Adalberto.

- A partir de agora, todos devem permanecer na fábrica. A polícia foi chamada e se prestará a ouvir os depoimentos de cada um.

Ninguém concordou com as ordens dadas, passava das oito horas da noite. O expediente terminava às sete e meia.

- É melhor não contrariar e acabar perdendo o emprego – disse Luciano. Os empregados foram aconselhados pelo supervisor e acabaram cedendo.

Os policiais chegaram em quinze minutos. Iniciou-se o longo interrogatório. As principais suspeitas caíram sobre Luciano, com a morte de Adalberto, ele seria o novo vice-diretor. Mas em seu depoimento o supervisor apontou um álibi, passara a tarde inteira com o diretor Hernandes conferindo o funcionamento da máquina de tear recém-adquirida.

O depoimento de Valesca foi o mais demorado. De acordo com o que disse a moça, ela havia encontrado Adalberto morto quando foi tingir os tecidos que estavam prontos. Entrou na sala de cozimento das tintas e viu o cadáver sobre a escrivaninha. Jazia com uma faca cravada no pescoço. O defunto segurava a arma que o matou como se tivesse tentando retirá-la com a energia que lhe restou após se defender do assassino.

Luciano ouvia tudo que a moça dizia. Mais tarde, quando os policiais terminaram o interrogatório, ele segurou os braços de Valesca com toda força. Perguntou se ela realmente não era culpada, se não fez aquilo para ele subir de cargo na fábrica e deixar de ser um supervisor. O amor proibido dos dois estava indo longe demais. A moça respondeu que não, que jamais teria coragem de matar alguém. Luciano sabia que era mentira. Sabia também que ela seria capaz de mentir muitas outras vezes.



p.s.: em um conto pequeno, é normal a confusão de personagens

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Sobre golpes, tretas e literatura de comadre

- Seqüestramos seu filho!

Disse o cara ao telefone. Veio com um papo que era do Corpo de Bombeiros, perguntou se eu conhecia alguém de vinte e poucos anos, descreveu mais ou menos a pessoa. Quando confirmei que era meu filho, veio com o golpe.

- Chupe o pau dele! – Foi minha resposta.

Imagino que ficou tão desconcertado que emudeceu.

- Com carinho, tá? – Pedi. E desliguei.

Eu não tenho filho. Sabia que o telefonema era um golpe. Coisa de presidiário, ligam para alguém, jogam um verde e exigem como resgate depósito em contas-laranja. Dá para fazer a transferência pelo computador da casa. Em minutos, extorquem a grana que será retirada em caixas 24 horas.

Detesto golpe, constantemente somos assediados por sem-vergonhas tentando nos passar para trás.

Pior é que agora a prática se expandiu para as grandes empresas. Minha conta de telefone veio 27 pilas mais cara. Liguei para a GVT. Uma eternidade entre labirintos de “tecle zero para recomeçar”.

- Filho – Falei com minha voz grave e pausada, pareço um excelentíssimo alguém com ela – preste atenção! – Explanei detalhadamente o que havia de errado. O atendente, intimidado, corrigiu a conta e pediu desculpas.

- Não.

- Não?

- Não desculpo! Vocês sabem que erraram e mantiveram o engano pois o prejudicado era o consumidor. Detesto golpe.

Desenvolvendo a idéia, vi há muito que grandes empresas, como as de cartões de crédito, que cobram pelo serviço o fazem apenas para ter um extra. O lucro bruto vem do pagamento das faturas.

- Empresa de cartões? – Ligo todo início de ano. – Quero cancelar!

Outra eternidade de labirintos numéricos e sempre sou enviado para uma “central de análise para encerramento de conta”. Centenas de opções depois, o atendente informa que retirará todas as tarifas do cartão para aquele ano se eu continuar com ele.

Cumpro rigorosamente este ritual com todas as empresas que cobram pelo serviço. Algumas vezes consigo apenas um bom desconto. É uma treta, um atalho para fugir das taxas. Um contra-golpe ao sistema capitalista. A única saída anárquica porém legal à exploração exagerada, outro nome para roubo institucionalizado.

Me peguei pensando nesta crônica na fila do caixa-eletrônico – ainda não dá para imprimir dinheiro em casa. Retirei uma miséria, pois medíocre estava meu saldo. Imaginei se algum dia eu conseguiria ganhar algum dinheiro como escritor. Sei de tantos que ganham honestamente seus trocados em revistas e jornais, e outros, horrorosos, que são até homenageados.

Quais são os caminhos para o sucesso? Escrever bem, ter boas idéias e... algo mais. Sorte? Talvez. O que tenho visto no meio literário é um grande suporte entre escritores, todos se cumprimentando e elogiando. Todos conclamam aos leitores que tais compadres são os melhores escritores depois deles próprios. Uma tremenda masturbação coletiva.

Ao leitor, sobra a própria crítica às obras, pois não se pode confiar na sinceridade desta trupe de escritores tão desprezada. É nesta hora que a casa cai! Ele percebe que aquele sujeito tão elogiado é somente o amigo do elogiante, não um bom autor. Vê-se engrupido no pior dos golpes: a opinião, que não precisa ser embasada, nem coerente e muito menos verdadeira. É só um incentivo.

Quem perde é a literatura, pois vê mais um leitor fugindo da leitura, afinal, ele não é obrigado a aceitar porcarias.

Em todas as áreas existe protecionismo. Nem dá para resistir, só lamentar não fazer parte. Obviamente se eu estivesse entre os que são elogiados e vendem livros e participam de congressos, recebendo belos cachês pelas besteiras que escrevem, não contestaria o sistema. Calar-me-ia, não sou trouxa. Mas não posso entrar para este grupo de literatura de comadre, sou muito crítico, escrevo muitos palavrões, não sei elogiar tosqueiras.

Se um dia eu amadurecer, me enquadrar, tiver talento o suficiente e for convidado para o chá dessas tias, ah, ai sim será uma bela treta. Até lá, continuemos na batalha – contra tudo e todos.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

De novo

Estou feliz,
Não nego.
Açucarei
Esse copo de mágoa
Que carrego

Vem,
Coisa boa,
De novo se embrenha
Nos cabelos-cinza
Calor requeimado
Da minha
máquina
de amor a lenha.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

NO VIDRO

outros ônibus perpassam minha cabeça
é um reflexo translúcido e narcísico
do correr da noite às luzes
de dentro, consigo ver a via
mas não conjugo estar
condicionado a esse frio:
as pessoas da cidade vão
sem brio, com breu, sombrio
ou o pacto sempre são
de um bem estar vazio.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Pedras de(s)caminhos.

Mais que teu silêncio eu não era,
e tão desesperadamente acreditavas,
que mal via eu ser a sombra dos teus passos.

Sempre e tanto, por todo e tal contentamento,
eu era tu e era outro, era apenas o apego do teu verbo
teu delírio de apegar.

Tanto confirmo que hoje estás pelas esquinas,
procurando o meu nome repetido
inventado teu aquele nome,

que hoje eu, que sou apenas?
hoje eu, que sou teu sempre,
mal percebes que procuras teu sentido

no oposto do meu nome.

Não me queres de volta.
Queres tua vida de volta,
e como posso eu devolvê-la, quando tu mesma a tiraste?

Atiraste contra a pedra do teu nome
contra todos nossos sonhos,
e agora choras com teu eu arrependido.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Insanidade, despudor e desatinos.


Aprisionado por palavras,
insana, infame pena.
Debaixo de um tapete
somente poeira.
Restos de pensamentos,
retalhos mortos
de carne humana.
Fotografia,
fotocópia,
revistas
e jornais.
Notícias velhas,
quadrinhos e esquadrilhas.
Jato de ar,
jarro de água,
jeito traiçoeiro
de afugentar crianças.
Caretas, picaretas,
marretas e arpão.
Guloseimas,
balas,
chicles de menta,
arrebento de nostalgia.
Melancolia, melancia,
flacidez
e guerra-fria.
E onde está o povo?
Voando por aí?
Buscam novas fontes,
fronteiras e minas,
lindas meninas
de vestido de chita.
Enquanto a mais bonita
faz tranças no cabelo
e seguindo o mesmo zelo
o pai descansa
na rede,
lugar onde a sede
não o alcança.
Chapéu quebrado na testa,
que vida é esta
cheia de preguiça?
Início de semana
e a cidade se inflama
por estas loucuras.
Desvelo,
falta de zelo,
rompe o lacre,
arranca o selo
e os loucos saem
pelas ruas,
mente insana,
pele nua,
desnuda de qualquer
pudor,
sem qualquer
poder sobre os demônios
que ladeiam
a gamela.

Flávio Offer
Poema publicado nos livros:
“Grandes Escritores de Minas Gerais vol.III – Rio de Janeiro: Litteris Ed.: 2004.”
“CATA VENTOS – o destino de uma Poesia/ Flávio Otávio Ferreira. – Rio de Janeiro: Litteris Ed.: KroArt, 2005.”

domingo, 6 de maio de 2007

AMANHÃ

Hoje
Comemos a carne
Comemos as vestes
Somos antropófagos
Carnívoros devorando a vida.
Hoje
Somos miseráveis
Das idéias
Dos sentidos
Da futilidade.
Cérebros devorando mentes.
Hoje
Matamos os deuses
Outrora louvados
Antes adorados
Para sempre odiados.
Hoje
Não há motivos
Nem desculpas sinceras
Não há caminhos
Ou ruas seguras.
Amanhã
Nada restará
Das almas que devoramos
Dos homens que ignoramos
Dos deuses que matamos
Das vestes que nos abrigavam
Do frio gelado de nossa própria consciência.

sábado, 5 de maio de 2007

Contra-Proposta ao Diabo


Era uma noite escura e fria. Chovia suavemente; uma chuva do tipo que não molha, apenas esfria. A lua cheia estava alta num céu emaranhado de nuvens carregadas que não deixavam à vista nenhuma estrela. O asfalto molhado da rua deserta refletia o brilho da lua juntamente com as pequenas poças inquietas com os mínimos pingos de chuva que caíam.
Estava voltando andando para casa. Havia ainda muito caminho ainda pela frente. Resolvi parar em um bar de esquina para tomar um vinho para esquentar o sangue.
O bar era muito sujo e havia apenas uns dois bebuns sentados com várias garrafas de cerveja vazias e uma pela metade. Pela aparência, julgar-se-iam muito bêbados.
Eu não pretendia ficar muito tempo.
Pedi um vinho ao garçom.
Enchi meu copo e levei-o à boca. Gostoso trago.
Nesse momento um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos entrou no bar e sentou-se ao meu lado.
Também pediu um vinho.
- Olá, sou o diabo. – falou-me seriamente.
Eu sorri e disse:
- Olha, vai brincar ali com aqueles dois bêbados que eu não estou ainda nesse nível.
Ele sorriu-me com escárnio, segurou com a mão meu copo de vinho e congelou-o, olhando-me fixamente.
Arrepiei-me.
- É verdade? – perguntei com a voz tremendo.
- Sim. – e bebeu mais um trago de seu vinho.
Fiquei pelo menos um minuto sem falar nada, apenas tremendo todos os meus ossos e bebendo o máximo que podia. Pedi outro vinho.
Ele continuava a olhar-me.
Percebendo que o demônio queria alguma coisa comigo, respirei fundo para tomar coragem e disse-lhe:
- O que você quer?
- Sua alma. – respondeu-me como se já soubesse da pergunta.
- E como é que você vai pegá-la? – perguntei já um pouco mais de confiança, pois minha raiva aumentava progressivamente.
- Eu lhe ofereço tudo que você desejar. Mulheres, quantas quiser; uma quantidade de dinheiro que nunca acaba; poder ilimitado, sobre todas as pessoas que você quiser. Você poderá ter tudo em suas mãos. Apenas deve se comprometer a, quando você morrer, entregar-me sua alma.
Olhava-me esperando a resposta.
Tomei um trago do vinho e falei:
- Cara, você pode mesmo ser o capeta, o diabo, demônio ou como preferir ser chamado. Apenas não entendo como você sempre aparece para as mesmas coisas. Afinal, foi isso mesmo com Fausto, Macário, você não conhece inovação? Uma nova forma de contato, de proposta? Pois então, para lhe ensinar eu também faço uma proposta – falei meio que inconsciente.
Apenas deixei as palavras saírem da minha boca. Em sã consciência, não falaria essas coisas, principalmente direcionadas à pessoa que era.
Ele, que não esperava uma resposta desse tipo, ficou sem reação. Após refletir um pouco, disse:
- Tudo bem, quero ouvir-lhe. Qual sua proposta?
- Viva a vida de um mortal.
O som da risada do diabo acordou os bêbados e chamou a atenção do garçom para a conversa.
- E qual a graça disso? – perguntou-me, como se fosse realmente uma piada, mas, no fundo de sua alma (se é que se pode chamá-la por esse nome) havia certo interesse.
- É simples, companheiro. Você existe pela eternidade, sem preocupar-se com a vida ou a morte, principalmente com esta última. Muito pelo contrário, você promove-a. O mundo com vida ou sem vida, você e Deus sempre hão de existir. Estão fadados ao castigo da eternidade pela criação do universo. E o que eu lhe proponho? Viva uma vida mortal. Conheça o que é ser como eu, como era Fausto, como era Macário. Conheça como é comemorar um aniversário, mais um ano de vida; como é celebrar o ano novo cheio de esperança, esperando sempre coisas melhores, pois não se sabe quando a vida irá acabar. Sinta o peso da idade avançando sobre seu corpo, tirando-lhe os cabelos, encolhendo-lhe os membros, tornando-o podre. Sinta como é a perda de alguém pela morte. O medo de acontecer o mesmo com você. O pavor de perder tudo que você construiu nessa vida. E a volúpia do último suspiro. O derradeiro cerrar dos olhos. O sono profundo. Você não tem nada disso, inveja-nos. Está escrito no seu interior. Você condena as pessoas quando, na verdade, você mesmo já está condenado.
Ele ouvia-me atentamente.
- Então, ouviu minha proposta? Simplesmente entregue seu cargo temporariamente a um dos seus subordinados lá de onde você vem e faça essa experiência. Sinta na carne humana o que é a dor, o que é o medo, a tristeza, a violência, o terror que tanto você promove.
O garçom olhava-me estupefato.
Talvez estivesse se perguntando como alguém poderia ficar tão bêbado com apenas duas garrafas de vinho.
O diabo permanecia calado.
Finalmente levantou-se, tomou o último trago de vinho do seu copo e virou-se para a saída.
Ao abrir a portar ele tornou seu rosto para mim e disse, carinhosamente:
- Obrigado!


André Espinola

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Passarinho sem asas


Na estrada, no caminho
sou pa
*******ssa
*****ri
*******nho
sem asas
(...)
anseio estar pronto pra voejar
sou despojado de tempero alado
da anarquia, do fado
do desterro atrelado
liberto-me em meu instante pensar
volito em sinfonia de cantos
em odes ao vôo infinito
(quisera ser destemido)
e num salto, faísca de momento
apanhar borla em pé de vento
- nem que fosse derradeiro intento!
esvoaçar entre nuvens em adejo solto
degustando
o sabor do vento e
o arroubo
da tão almejada
LiBeRdAdE

quinta-feira, 3 de maio de 2007

O centro que me tira do eixo

Por que você fica mais à esquerda
Do meu, por ti, já pequeno peito
Se você vira o centro do meu ser
Nos receados ou ávidos momentos?

Talvez por isso que na glória ou perda,
No sol a pino ou no meu leito,
Você tire esse ser torto do seu eixo,
Já que pesa mais nesses momentos
Tais onde emaranha-se denso!

E sendo um fadado centro,
Mas não estar, em mim, centralizado,
Tira-me o eixo e me e se contraria...
Rompendo-nos, nos ligeiros giros,
Nessas revoluções em forma de dias...

Augusto Sapienza

terça-feira, 1 de maio de 2007




memórias e lítio



só há mais lucidez
nos olhos vidrados
absorventes
retratos de Goya
tão perfeitos, tão humanos
e salve o polido insano
e se faça a ode ao engano
ao hímem dourado
da moçoila puritana
ao pênis virgem do sacerdócio
só há mais lucidez
mais apologias ao haxixe
ao vício, à embriaguez
reverências ao art. 216, Lei nº 11.106
festejem com bebida
com dança tribal e corpos pintados
com césio 137
na ignorância que vos compete
comemorem as vergonhas da nação
a miséria, a falta de cultura, a corrupção.





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Mãos trêmulas anseiam o toque
Frias, laudatórias
Esboçam a insegurança do ser
Tardias, fracas, tentam a aproximação
Não se expõem, são furtivas,
Lascivas, num motim visceral e intenso
Não há compreensão nas mãos
Elas por si só são confusas
São farrapos corpóreos
Que não obedecem o consciente
Agonizam em sagas desejosas,
Atômicas, nauseantes, despudoradas,
Mãos sempre almejam algo secreto
Algo que faz doer o peito arfante
Trazem nos dedos a chaga poética
Uma aura desperta
Calada e inconformada,
Infelizes, as mãos ainda anseiam o toque.



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