sexta-feira, 25 de julho de 2014

A face por trás da máscara

Ilustração: Ivelin Trifonov



A chuva, fraca, respingava morna em seu rosto magro, de semblante abatido. Sentia o calor embriagar-se até o coração. Sem delongas fugia. De algo, de alguém e de si. Percorria a penumbra de uma rua assaltada pelo pavor da madrugada. Uma noite fragilizada pelas badaladas de horas vagarosas e impertinentes. Sob as gotas pesadas rastejava os pés sem rumo, sem direção, carregando em suas mãos a culpa pelo ato desvairado e descomedido.

O coração palpitava quase sonolento, sofrido pela tensão suscitada há pouco. Tremia com o frio que preenchia o íntimo. As nuvens se recolhiam como uma cortina fechando o espetáculo. Conclusão épica, mas trágica; um desfecho como o fim de uma leitura, onde o fim não agrada; de um dia retirando-se, em trovoadas, para a noite comparecer. Era o fechamento de um ciclo. Abrupto. Revelador. Assustador. Seus dedos convalesciam diante do que restou. Não havia alento. Só dor.

Os passos lhe conduziam até o mirante. Mas ele sentia ir ao inferno. Mais do que quando vira. Os nervos explodiam. Mas não como antes, em cólera. Agora era de impotência e apatia. Era o resultado de um ser acometido pela adrenalina de vestir o rosto com uma indelével mácula. Sua feição era outra, era a de alguém escalpelado, com a máscara caída, com outra face construída por um vil momento; um fatídico acontecimento que o traumatizou.

Parou diante da sacada do mirante. O rio brilhava em reflexo com a luz estrelada da noite. Os olhos culposos refletiam a dor de outros olhos que o fitavam estáticos, chorosos. A imagem que ali ficaria eternizada. Seu choro era contido, engolido pelos soluços fortes, impávidos e sem ritmo. As estrelas não entenderiam o alcance de sua consternação. Faltou hesitação e medo, um receio que o impedisse. Mas ao vê-los, ao flagrá-la, o ódio permeou suas veias, desabando qualquer máscara humana que ainda lhe cabia.

A cena se repetiu pela sua mente em segundos. A culpa que lhe abraçava tinha toneladas. Arrependera. Sua nova face, antes oculta pelos demônios, formou-se no sussurro de um peito amargo, de uma tentação malévola, atendida na pressão da dor. Com um tiro matou o amante. E em segundos que pareciam séculos, matou a mulher de sua vida logo após, a quem lhe contemplara como se pedisse misericórdia. Segundos horripilantes para quem caiu em si minutos depois ao ver o sangue de sua amada. Abraçou-a em uma fúnebre despedida e disparou em fuga, ensandecido.

Agora diante da sacada do mirante, chorava pela face do desespero. Ouvia ao fundo a sirene de polícia. Nenhuma prisão seria mais dolorosa do que a imagem que ficara de lembrança. Num ato consciente, mas vestido em loucura, apontou a arma em seu próprio rosto. O cano entre os olhos lhe afundava na alma. Não hesitou. O som ecoou pelo horizonte. As estrelas cintilaram, testemunhas de seu próprio julgamento. O rio levemente se ondulou e pássaros próximos, assustados, alçaram voo para longe. E o mundo viu um homem se matar pela face que ele nunca queria ter desmascarado de si mesmo: a da vingança.

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